Sem querer querendo.

Ironia ou não,
no dia da Black Friday
o mundo também perdeu
um pouco do seu valor.

Enquanto pessoas corriam
atrás de descontos materiais,
nos descontaram algo
de valor imensurável.
Não houve lucro algum,
muito pelo contrário,
pois o prejuízo foi irrefutável,
a tristeza tornou-se inevitável
ao constatar o inaceitável:
ele partiu da vila,
partiu da vida
e partiu muitas vidas.

Que criança nunca quis
passear em Acapulco?
Que criança nunca usou pelo menos um
de seus inúmeros bordões?
Bolanõs era um ser de luz
que com sua magia fraterna
sempre afagava os nossos corações.

Agora ficamos reféns
de humoristas e heróis descartáveis,
e nem adianta perguntar
quem irá nos defender,
pois o herói colorado da marreta
acabou de partir desse planeta.

Eu nunca tinha entendido direito
a frase "foi sem querer querendo",
mas hoje eu a compreendi perfeitamente,
pois foi exatamente assim
que o grande mito nos deixou:
sem querer querendo.

Bruno Rico.




Eis uma singela homenagem para o homem que foi presente e foi um presente na minha infância e na minha vida num geral.

A doença do negro moreno.


Jorge havia passado a noite toda tossindo mais do que o normal, essa tosse chata já persistia por mais de duas semanas, só que nesta última noite a tosse não deu trégua, e o pobre coitado sequer conseguiu dormir. Mas sem plano de saúde, com muito trabalho por fazer na obra, e com um patrão nada maleável, ele resolveu ir remediando o problema, e remédio mesmo que é bom, nada.
Pela manhã ele deixou seus três filhos com a vizinha - que também era sua tia-avó - e partiu com a esposa Letícia para o posto médico mais perto do morro em que morava.
Jorge residia no pico do morro, praticamente na última casa, se é que podemos chamar de casa um cômodo dividido por cortinas, com apenas uma janela, telhas quebradas e esgoto correndo bem na porta.
Apesar de o ditado popular dizer que “pra descer todo santo ajuda”, até a descida da colina estava sendo tortuosa para o cansado Jorge. A cada dez degraus de escada, vinha uma tosse. Quando finalmente chegou ao asfalto, as tosses diminuíram, mas ele ainda se sentia muito fraco, e sequer pôde repousar sentado no ônibus, já que o mesmo estava completamente lotado às oito da manhã. Algumas pessoas até repararam que ele estava muito mal, mas na dúvida, preferiram permanecer sentadas.
Quando finalmente chegou ao posto médico com sua esposa, um milagre aconteceu logo de cara: o local estava vazio! Jorge chegou até a se animar, afinal de contas, aquele lugar vivia mais lotado que banco em dia de pagamento, e isso também era um fator que sempre lhe desencorajava a procurar um médico.
Ao se apresentar na enfermaria para fazer a ficha, a enfermeira foi logo perguntando os dados:
- Nome?
- Jorge Domingues da Silva.
- Idade?
- Vinte e sete.
- Cor?
- Moreno.
- Não, meu querido. No Brasil você só pode se declarar dentro de cinco cores, que são branco, pardo, negro, amarelo e índio.
- Então bota amarelo. – respondeu o enfático Jorge.
Nesse momento, a enfermeira que atendia Jorge, uma loira – dessas de pentelho preto – olhou para a outra enfermeira que estava sentada ao seu lado, e ambas fizeram aquela cara de “esse negão está de sacanagem”. A loira respirou fundo, olhou bem para a face do Jorge e disse:
- Você é japonês por acaso, pra se declarar amarelo?
Jorge olhou para sua esposa e riu, mas foi um riso de pessoa sem graça, que não tem o que fazer e acaba rindo para não ficar ainda mais sem jeito.
- Então é pardo, né. – disse Jorge, mais perguntando do que afirmando.
A enfermeira então marcou pardo na ficha, mesmo a contragosto, até porque Jorge era um negro de 1,90m de altura, a cor da sua pele era a mais escura possível, então o termo pardo soava como um grande eufemismo para todos que ali estavam. Mas como a enfermeira loira parecia estar com pressa, ela não quis se alongar nessas questões, até porque percebeu que seria em vão. E assim ela continuou com a ficha:
- Você faz uso de algum tipo de droga lícita ou ilícita?
Depois de dar uma pausa, Jorge respondeu:
- Sim, fumo maconha.
Nesse momento, a esposa Letícia fez cara feia e deu uma cutucada nele, mas foi logo advertida.
- Ué, mulher, tem que falar, a moça perguntou.
- Pois é, tem que falar mesmo, pois tem remédio que não pode fazer associação, se o paciente não falar e tomar o medicamente errado, pode até morrer. – disse a enfermeira loira, fazendo caras e bocas para a esposa de Jorge.
Por fim, a ficha foi preenchida e as enfermeiras pediram para que o paciente aguardasse, pois logo seria chamado.
Enquanto de um lado Jorge cochichava sobre as enfermeiras com a esposa, de outro lado as enfermeiras cochichavam sobre Jorge.
Ao ser chamado no consultório, Jorge foi fitado da cabeça aos pés pelas enfermeiras; sua esposa fez cara de nojo, mas Jorge nem viu nada, estava focado, queria apenas ser atendido e ser curado daquela tosse infernal.
Depois de sair do consultório ele foi encaminhado até a radiografia, a pneumologista havia pedido uma chapa do tórax.
Horas depois, a mesma enfermeira que havia atendido Jorge pela manhã chegou com a radiografia dele nas mãos, mostrou para a colega e disse:
- Olha amiga, coitado do negro moreno, está com tuberculose.
- Ih, não vai mais poder fumar maconha – completou a amiga.
Após pegar o resultado e ganhar uma sacola cheia de antibióticos, Jorge foi embora desolado. Não poderia trabalhar tão cedo, não poderia fumar sua maconha pelo menos por seis meses, porém, ao chegar à porta de casa teria que ser recebido pelo esgoto que já era praticamente da família; e olha que a doutora pediu para que ele mantivesse uma boa higiene. Pobre Jorge.

Bruno Rico. 

Senil solidão.



Sentirei saudade quando me faltar
o que em outrora parecia supérfluo.

Sentirei medo quando me faltar
quem hoje me acalanta.
Sentirei melancolia
quando lembrar das minhas
antigas alegrias.
Sentirei dor quando lembrar
que há tempos eu já era velha,
mas ainda era criança.

Com o passar do tempo
poderei receber a visita
de um amigo indesejado,
aliás, como é abusado
aquele alemão safado!
Ele sempre chega sem avisar,
além de nunca bater à porta,
é um mal-educado de ofício;
esse é o Sr. Alzheimer,
um chato doidivanas que quer sempre
levar-me para o hospício.

Ele sempre chega pra ficar,
nunca parte,
nunca mesmo!
É um amor insano,
um grude cotidiano,
ô sujeitinho tirano!

Sempre que ele chega
eu recordo das paixões
da minha mocidade,
pois com ele eu perco todos
os meus sentidos,
perco as forças,
esqueço do mundo,
esqueço de tudo.

E antes que eu me esqueça,
gostaria de deixar um recado:

Quando não mais ouvirmos,
sentiremos falta da música.
Quando não mais andarmos,
sentiremos falta da dança.
Quando nos silenciarmos de vez,
sentiremos falta dos gritos
que dávamos para aliviar
a falta de sensatez.
E quando por fim, nos faltar a razão,
e chegar a hora da senil solidão,
não sentiremos falta de mais nada,
pois todas as lembranças serão apagadas
e todos os sentimentos
serão extintos do coração.

Bruno Rico.

Eis um reflexo do processo "evolutivo" do ser humano. 

A cidade secou.


João sofre de sede,
Maria sofre de depressão.

O primeiro vagueia sempre fraco,
enquanto a segunda,
vive jogada no chão.

Chão que forma a cama
que a recebe a dor.
Chão árido,
espelho de um lugar
onde a água já secou.

Enquanto alguns
regam o ego,
outros secam as fontes,
sempre fez parte do instinto humano
limitar os horizontes.

A cidade seca
é a residência permanente
desses dois personagens,
que lutam por coisas distintas,
mas que possuem na face
o mesmo olhar de cansaço.
Enquanto João clama por água,
Maria quer apenas um abraço.


Bruno Rico.