É dia de falar de segregação racial, mas por outra ótica.



O meu texto de hoje envolve um relato bem pessoal, que ocorreu há pouco mais de um ano, no dia 20 de junho de 2013, para ser mais exato.
Era época do ápice das manifestações no Brasil, o país estava em plena ebulição, era papo de gigante acordou pra cá, gigante acordou pra lá, e por conta disso muitas pessoas se animaram e resolveram ir para as ruas.
Pra quem não se recorda, esse dia 20 de junho foi o dia em que a Avenida Presidente Vargas no Rio de Janeiro, ficou totalmente tomada por manifestantes, que na verdade nem eram tão manifestantes assim, pois a grande maioria que ali estava nem sabia o porquê de estar ali.
Mas também existiam pessoas com propósitos, grupos organizados em prol de algo que eles realmente acreditavam, e por conta de um desses grupos é que eu me animei e também resolvi ir, afinal de contas, eu não queria ficar vagando pela rua sem ter pelo o que gritar e sem ter pessoas que compartilhassem do mesmo sentimento, eu não queria ir para uma manifestação para ser um mero espectador, queria me manifestar de fato, e foi isso que tentei fazer, só que infelizmente não deu. E é aí que surge o meu relato traumático, que por algum motivo eu fiz questão de guardar até hoje comigo, só que conversando com alguns amigos sobre esse fato, eu percebi que precisava escrever algo mais aprofundado sobre isso tudo, até porque eu vi e ainda vejo algumas coisas na internet acerca desse assunto, e fico sempre incomodado com algumas abordagens, então por que não escrever a minha própria abordagem com base em uma experiência real que eu vivi?
Já adiantando o assunto, o meu relato envolve segregação racial e racismo, mas não é aquele racismo clássico e histórico de branco contra negro, não, não é sobre este racismo que eu vou escrever. Quero falar exatamente do contrário, do racismo do negro contra o branco, racismo que vi de perto, e mesmo sendo um homem negro, eu fiquei profundamente incomodado com tudo que vivenciei, afinal de contas, se todos nós queremos ser vistos como seres humanos, temos que ter atitudes humanas, e foi isso que fez com que eu me sensibilizasse com o outro, independente de cor, pois se eu sou uma pessoa que luta contra o racismo, eu não posso me levantar apenas quando o branco insultar o negro, quando o contrário ocorrer eu também devo me levantar, senão eu serei um hipócrita e jamais poderei levantar bandeira contra o racismo.
Esse tema de racismo do negro contra o branco é bem polêmico, e talvez por isso muitas pessoas fujam de escrever sobre esse assunto, mas eu estou tranquilo quanto a isso, até porque já estou acostumado com algumas polêmicas que meus textos levantam, e independente de qualquer coisa, eu estou embasado em argumentos reais, então eu não tenho o porquê de ter receito ao escrever sobre isso, e pra falar a verdade eu até gosto de escrever sobre coisas que a maioria gosta de ocultar, acho que possuo certo fascínio em tirar o ser humano da sua zona de conforto.
Talvez se esse texto estivesse sendo escrito por um branco, os negros poderiam torcer o nariz, mas como é escrito por um negro, eu lhe garanto que alguns negros também irão torcer o nariz. Certamente surgirão algumas falácias. Citarei as mais clássicas: “Mas o negro sempre foi o mais racista de todos”; “O negro é racista com ele mesmo”; “O negro adora se vitimizar”. Não! Eu não concordo com nenhuma destas aspas que acabei de citar, e antes de expor o meu relato eu gostaria que isso ficasse bem claro na sua mente. OK? Então OK! Vamos ao relato:
Como no meu facebook eu tenho muitos conhecidos de movimentos sociais e movimentos negros, eu vi que um grupo de negros estava se movimentado para ir a essa manifestação do dia 20. eles criaram um grupo e por lá estavam se organizando. Como eu queria ir para a manifestação, mas não tinha um propósito muito definido do que iria reivindicar, achei bem interessante a ideia de ir com o movimento negro, até porque a causa era nobre, pelo grupo eles diziam que a causa principal era o fim do extermínio do povo negro, e eu me animei com isso, nunca tinha participado de nada parecido, era um momento único, estava de folga no trabalho, aquela tinha tudo para ser a maior e melhor manifestação do Rio de Janeiro, tudo estava culminado para que eu fosse, e por fim eu confirmei a minha presença e fui.
Minha companheira também se animou de ir comigo (ela sempre está comigo para o que der e vier), eu fui de casa e ela foi do trabalho, que era no Centro mesmo.
Assim que entrei no metrô eu fiz questão de ligar para o cara que conhecia e que havia me convidado, mas eu só conhecia por internet mesmo, até aquele momento não havia visto ninguém pessoalmente, todos eram absolutos estranhos até então.
O pessoal ficou reunido na porta da igreja da Candelária, lugar onde ocorreu a famigerada chacina da Candelária, onde menores de rua foram brutalmente assassinados na calada da noite por policias. Achei um lugar ótimo para se reunir em prol da nossa causa, e de fato era o melhor lugar para isso.
Chegando lá, ainda de dia, falei com o contato que eu tinha e vi um total de uns 35 negros. As mulheres estavam colocando os seus turbantes, alguns vestiam adornos africanos, a maioria escrevia frases em seus cartazes, e eu fiquei de pé, atento a tudo, como bom observador que sou.
Algum tempo depois a minha companheira chegou, estava animada, assim como eu também estava, pois até ali tudo estava lindo, vários cartazes com frases do Malcolm, do Martin, frases de afirmações negras, diversas pessoas parando para tirar foto; até ali eu não tinha o que falar de mau.
Eu havia levado duas cartolinas de casa, e lá nos animamos de escrever algo, eu pensei em diversas frases, mas só três viraram cartaz: “Uns preferem morrer ao ver um preto vencer” do rapper Criolo, “Cada negro que for, mais um negro virá, para lutar com sangue ou não” do mestre Wilson Simonal, estas duas estavam em frente e verso no mesmo cartaz, e em outro cartaz estava escrito “Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil” dos Racionais Mc’s, pronto! Estávamos munidos com nossas armas para quando a manifestação começasse a andar.
Só que antes da saída da manifestação, os negros deram as mãos, fizeram uma rodinha e começaram a discursar, e foi a partir dali que começou todo o meu desapontamento.
O lugar que a gente estava acabou chamando bastante atenção, afinal de contas era o único local onde os negros estavam reunidos, as pessoas (brancas e não brancas) paravam para olhar, vi diversos brancos parando com olhar de admiração. Eu como exímio observador, reparei diversos deles falando “Caramba, que maneiro, os negros reunidos em prol da sua causa”, “Que legal esses cartazes, a luta deles, que bonito isso”, enfim, eu consegui perceber diversos elogios, e deu pra ver que era algo sincero, a maioria dos brancos que estavam em volta realmente apoiavam o que estava acontecendo, mas na hora do discurso feito pelos meus irmãos de cor, esses irmãos brancos começaram a ser discriminados.
Teve uma hora que um manifestante branco passou e gritou “Estamos juntos!”, e uma irmã de cor prontamente gritou “Estamos juntos, mas não estamos misturados”, eu não sei se o cara ouviu, mas a resposta foi pra ele, só sei que eu ouvi e não gostei.
Depois disso, percebi um desentendimento entre dois negros do meu grupo, eles gritavam um com o outro, tinha até uma mulher segurando um deles. Mesmo sem saber o motivo da briga eu achei aquilo muito feio, se tinham diferenças, que não a tirassem em público, muito menos ali, muito menos naquele momento e naquele local, pois aquilo era assunto certo para as pessoas que não apóiam nossa luta; certamente diriam: “Olha lá os pretos, depois querem falar de união, não podem se reunir que dá merda”.
Depois que vi qual era o motivo da briga, achei tudo mais estúpido ainda, é que na hora que nos negros deram as mãos, a gente ia cantar o hino nacional, foi quando um saiu da roda e depois disse aos berros: “Eu não canto o hino nacional! Não adianta, eu não canto, só canto hino africano”. Beleza, então a gente estava ali, em um movimento nacionalista, e o cara queria exigir que eu cantasse um hino africano? Putz, que idiota! Foi exatamente isso que eu disse pra minha companheira naquela hora.
Depois dessa confusão alguns negros discursaram, a maioria foi racista com os brancos, repetiam a frase “Estamos juntos, mas não estamos misturados”, falavam dos brancos da mesma forma que os negros rebeldes norte-americanos falam dos brancos em 1900. Eles apenas se esqueciam que naquela época o negro era pendurado e enforcado em poste, o bebedouro era separado, banheiro era separado, a grande Rosa Lee Parks se recusou a levantar-se de um assento no ônibus, pois os lugares eram separados, enfim, o que não faltava era meio para se praticar o racismo, e eu estou longe de dizer que o racismo acabou ou que ele não existe aqui no Brasil. Só que é preciso se adequar aos momentos, não podemos usar armas iguais em guerras diferentes, antes se usava a catapulta, hoje existe o míssil Tomahawk; deu pra notar a diferença?
O mais triste foi ver que alguns negros queriam discursar embasados na filosofia do grande Malcolm X, que foi um negro extremista sim, que foi racista com o branco sim, só que em outra época, quando esse extremismo era um instrumento de autodefesa do negro, sem contar que o grande Malcolm sofria grande influência do seu mentor Elijah Muhammad. Tanto é que depois de ir à Meca e ver que lá existiam muçulmanos de cor branca, Malcolm saiu da nação do Islã que seguia e foi percorrer o seu caminho sozinho, e a partir daí ele se desvencilhou do pensamento que o homem branco só poderia ser seu inimigo, e passou a vê-lo como ser humano, como uma pessoa que poderia ajudar na sua causa. E ele viu que o irmão negro também poderia ser seu inimigo, dependendo do interesse que estivesse envolvido, e até mesmo por isso, até hoje existem rumores que Elijah Muhammad foi o mandante do assassinato de Malcolm, justamente por não ter aceitado tamanhas mudanças dele.
É por isso que eu sempre digo que é preciso ter base e conhecimento no que se diz, ainda mais se você estiver dizendo que está falando em cima da filosofia de outra pessoa, pois é preciso conhecer bem a história dessa pessoa, conhecer a história completa, e não somente uma parte que lhe é conveniente.
Ali naquele dia 20, o ideal seria que aqueles negros usassem o discurso do ativista jamaicano Marcus Garvey, que defendia que todos os negros deveriam voltar para a África, e mesmo assim ele salientava: "Eu não tenho nenhum desejo de levar todas as pessoas negras de volta para a África, há negros que não são bons elementos aqui e provavelmente não o serão lá."
No discurso dos negros eu ouvi coisas sensatas sim, algumas pessoas chegaram e falaram sem precisar usar de racismo, mas a grande maioria foi muito racista com os brancos, que até aquele momento tiravam fotos, acompanhavam tudo atentamente, apoiavam o que era dito, só que depois eles começaram a se dissipar, e com toda a razão, pois ninguém é obrigado a ficar em um lugar onde falam que você é o mal, se você está ali para ajudar, ninguém está dentro do coração do outro para julgar intenções, e foi por isso que eu achei tudo aquilo muito errado, sem falar que descredencia a luta do negro, pois o oprimido acaba usando as mesas armas do opressor, e isso não o torna diferente, muito pelo contrário.
Aquilo tudo havia me incomodado tão profundamente que eu cheguei a tentar discursar também, precisava dar a minha opinião, só que a minha companheira me segurou, falou que não iria adiantar. E no final eu acho que ela estava certa, pois se eu chegasse na roda para falar praticamente tudo ao contrário do que estava sendo dito até então, outra briga poderia ocorrer.
Depois dos discursos, mesmo estando totalmente desanimado, e minha companheira compartilhava do mesmo sentimento, a manifestação enfim saiu e nós decidimos permanecer com o grupo, pelo menos por enquanto, mas aí eles começaram a cantar “Eu sou africano, com muito orgulho, com muito amor”, e aquilo começou a soar estranho, as pessoas nos olhavam com estranheza, o que era normal, afinal de contas, naquele dia nós estávamos em um movimento nacionalista, mesmo eu não sendo um grande patriota, eu entendi que ali estavam brasileiros lutando por melhorias, se iria surtir efeito ou não, isso é uma outra questão, mas ali estavam as pessoas que queriam gritar por algo, e aquela imagem com um monte de negros gritando que era africano, no meio de um movimento nacionalista, não soou legal.
A África é um lugar lindo de pessoas lindas, lugar este que espero conhecer antes de morrer, é um sonho que tenho, mas eu sou brasileiro, querendo ou não eu nasci aqui, e aqui também existe cultura negra, os negros já fizeram história aqui, já deram sua essência ao país, e eu sinceramente acho que é isso que deve ser valorizado, a cultura nacional do negro, tudo que ele fez e ainda faz por esse país, que ainda insiste em não valorizá-lo da maneira correta, e é isso que tem de ser gritado, pois somos negros, somos brasileiros, ajudamos a construir essa nação e temos que ser valorizados e respeitados por isso!
Agora, se um negro não se sente a vontade aqui e quer ir morar na África, é só juntar um dinheiro, comprar a passagem e ir ser feliz por lá, simples assim; existem bangalôs lindos por lá.
O texto ficou bem grande, eu sei disso, a maioria vai ficar com preguiça de ler, se você chegou até aqui, parabéns! Pelo visto o assunto te interessou bastante, e isso é bom, pois eu acho que esse tema precisa ser bem mais discutido do que é.
Peço perdão pelas linhas longas, mas não adianta, eu não consigo ser sucinto nesses casos, até porque eu preciso dessas linhas para me fazer entendido por completo, e mesmo assim tenho certeza que vai ter gente sem entender o que eu realmente quis dizer e outras tantas discordando do que eu disse. Mas não escrevi para ganhar aprovação de nada, escrevi para abrir os olhos de alguns irmãos negros, e tentar fazer com que eles entendam que se nós negros queremos que o branco nos veja como iguais, precisamos agir da mesma forma, a história nos mostra que a segregação só levou o mundo para o buraco com suas guerras insanas.
E por não concordar com tudo isso é que eu resolvi escrever esse texto, apenas por isso.

“Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam.”
“Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele.”

* Frases ditas pelo grande mestre Martin Luther King Jr.